terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Os herdeiros de Sayyid Qutb (João Pereira Coutinho)



O teórico egípcio mostra que a Irmandade Muçulmana está longe de ser uma força "moderada"


OS ESTADOS UNIDOS tiveram dois visitantes ilustres que voltaram para contar. O primeiro foi Alexis de Tocqueville (1805-1859). O seu "A Democracia na América" é, ainda hoje, o livro definitivo sobre a República, a "era da igualdade" e os seus intrínsecos perigos.
Mas existe um segundo visitante, nascido cem anos depois de Tocqueville, que não pode ser esquecido. Seu nome é Sayyid Qutb (1906-1966). Seu livro, com o título "A América que Eu Vi", é um belo complemento à obra de Tocqueville. Com uma diferença: o francês expressa a sua admiração pela América; o egípcio deixou-nos um documento pleno de ódio e horror.
Quem é Sayyid Qutb? Simplificando: é um dos teóricos fundamentais do islamismo sunita e o ideólogo "par excellence" da Irmandade Muçulmana, o grupo fundado por Hassan Al-Banna no Egito, em 1929.
Mas enquanto Al-Banna foi uma figura essencialmente "religiosa", ainda que advogando a jihad como forma de reverter a contaminação ocidental no Oriente Médio, Sayyid Qutb conferiu à guerra santa uma urgência empírica que arrepia qualquer cristão.
Ou, melhor dizendo, qualquer cristã: as suas descrições das mulheres americanas, que ele via dançando e rindo com uma liberdade e sensualidade ofensivas, convenceram-no da corrupção ocidental e da necessidade de combatê-la pelo terrorismo e pelo sangue.
Lembrar Sayyid Qutb é importante no momento presente. Porque o momento presente persiste na ilusão de que a Irmandade Muçulmana é uma força "moderada" para o futuro do Egito, na fase que se abre pós-Mubarak.
A ilusão não resiste à realidade.
Não resiste aos textos teóricos da Irmandade Muçulmana, que repudiam a democracia (uma importação sacrílega) e defendem a submissão ao Islã como caminho único para a complexidade e fragmentação das sociedades modernas.
Mas também não resiste às suas práticas: um dos excelsos subprodutos da Irmandade Muçulmana encontra-se hoje a governar Gaza. Falo do Hamas, é claro, um grupo terrorista que se recusa a aceitar a "entidade sionista" e que justifica a sua luta contra Israel com os "Protocolos dos Sábios do Sião", o documento forjado pelas autoridades czaristas no século 19 para instigar os "pogroms" do Império Russo.
Isso significa que Hosni Mubarak é a resposta para o impasse egípcio?
Obviamente que não. Mubarak foi uma resposta em 1981, após o assassinato de Anwar Sadat pelo radicalismo islâmico, ao impedir a desagregação do país; ao controlar o fanatismo da Irmandade; e ao honrar os compromissos de paz assumidos com Israel em Camp David.
Acontece que Mubarak deixou de ser uma resposta há muito tempo. E seria importante que o Ocidente, e em especial os Estados Unidos, aprendesse uma lição fundamental com a revolta corrente: não basta que os nossos aliados sejam inimigos dos nossos inimigos. É importante, também, que eles sejam amigos dos nossos valores.
E se esses valores não existem, devem ser criadas as condições institucionais e materiais para que eles possam florescer. Só existem democracias dignas desse nome quando o povo escolhe sem fome, sem medo e com a dignidade intacta.
Quando essas condições estão ausentes, a democracia transforma-se apenas num mecanismo formal que normalmente premia quem a deseja liquidar. Isso foi visível em Gaza, nas eleições legislativas de 2006; já tinha sido visível na Alemanha de Weimar. Com os resultados conhecidos.
É por isso que concordo com Charles Krauthammer, colunista do "Washington Post" e uma das vozes mais racionais da imprensa atual: o melhor que poderia acontecer ao Egito era experimentar um período de transição, tutelado pelas suas Forças Armadas, que permitisse responder às necessidades básicas de uma população enraivecida e faminta; e, por outro lado, que levasse à formação de partidos seculares e democráticos que se assumissem como alternativa à Irmandade Muçulmana.
O pior que poderia acontecer era montar as urnas da noite para o dia, estendendo um tapete vermelho para que os herdeiros de Sayyid Qutb pudessem aplicar o projeto totalitário do patrono.

jpcoutinho@folha.com.br

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