segunda-feira, 7 de março de 2011

A CRISE DA FÉ NA CIÊNCIA

Joseph Ratzinger

"Na última década, a resistência da criação em ser manipulada pelo homem manifestou-se como um elemento novo no panorama cultural global. A questão sobre os limites da ciência e os critérios a que deve se ater tornou-se inevitável. Para mim, particularmente significativo desta mudança de ambiente intelectual é a maneira diferente como se julga o caso Galileu.
Esse fato, embora tenha recebido pouca atenção no século XVII, foi elevado, já século seguinte, a mito iluminista. Galileu aparece como uma vítima daquele obscurantismo medieval que perdura na Igreja. Bem e mal foram separados por um corte nítido. De um lado, encontramos a Inquisição: o poder que encarna a superstição, o inimigo da liberdade e do conhecimento. De outro, as ciências naturais representadas por Galileu. Eis aí a força do progresso e da libertação do homem das cadeias da ignorância que o mantêm impotente diante da natureza. A estrela da Modernidade brilha na noite escura de trevas da Idade Média (1).
De acordo com (Ernst) Bloch, o sistema heliocêntrico, bem como o geocêntrico, é baseado em pressupostos indemonstráveis. Entre eles, desempenha um papel preponderante a afirmação da existência do espaço absoluto, mas essa alternativa foi, porém, anulada pela teoria da relatividade. Ele escreve, textualmente:
“Dado que, com a abolição do pressuposto de um espaço vazio e imóvel, não é mais produzido qualquer movimento nesse sentido, mas apenas um movimento relativo de corpos entre si, e visto que a medida desse movimento depende da escolha do corpo tomado como um ponto de referência (...),então hoje, como outrora, se poderia supor a terra fixa e o sol em movimento”. (2).
Curiosamente, foi Ernst Bloch, com seu marxismo romântico, um dos primeiros a se opor abertamente a tal mito (iluminista), oferecendo uma nova interpretação do que aconteceu.
    A vantagem do sistema heliocêntrico sobre o geocêntrico não consiste em uma maior correspondência à verdade objetiva, mas ao fato de que nos dá uma maior facilidade de cálculo. Até aqui, Bloch expõe apenas uma concepção moderna das ciências naturais. Surpreendente, porém, é a conclusão que ele tira:
“Uma vez dada como certa a relatividade do movimento, um antigo sistema de referência humano e cristão não tem o direito de interferir nos cálculos astronômicos e na sua simplificação heliocêntrica;  mas tem o direito de permanecer fiel ao seu método de preservar a terra em relação à dignidade humana e de orientar o mundo quanto ao que vai acontecer e ao que aconteceu no mundo (3).
Se aqui ambas as esferas de conhecimento continuam claramente diferenciadas entre si quanto ao seu perfil metodológico, reconhecendo tanto seus limites quanto seus direitos, parece muito mais drástica, porém, a apreciação  do filósofo agnóstico-céptico P. Feyerabend. Ele escreve:
      “A Igreja da época de Galileu foi muito mais fiel à razão do que o próprio Galileu, e levou, antes, em consideração as conseqüências éticas e sociais da doutrina galileana. Sua sentença contra Galileu foi racional e justa, e só razões de oportunidade política se pode justificar a sua revisão. (4).
Do ponto de vista das conseqüências concretas da reviravolta provocada por Galileu, CF von Weizsäcker dá, enfim, mais um passo à frente quando ele vê uma ligação diretíssima que conduz de Galileu à bomba atômica. 
Para minha surpresa, em uma recente entrevista sobre o caso Galileu, nao me fizeram uma pergunta do tipo “Por que a Igreja quis impedir o desenvolvimento das ciências naturais?”, mas exatamente a pergunta oposta, ou seja: “Por Igreja não adotou uma posição mais firme contra os desastres que iriam acontecer necessariamente, uma vez que Galileu tinha aberto a caixa de Pandora?”
Seria um absurdo construir com base nestas declarações uma apologética apressada. A fé não cresce a partir do ressentimento e da recusa da racionalidade, mas a partir de sua afirmação fundamental e sua inscrição em uma razão maior. [...] Aqui eu quis recordar um caso sintomático que evidencia até que ponto a dúvida da própria modernidade sobre si mesma tenha alcançado  hoje a ciência e técnica."

* Texto original: http://www.ratzinger.us/modules.php?name=News&file=article&sid=210

(1)Cfr. W. Brandmüller, Galilei und die Kirche oder das Recht auf Irrtum, Regensburg 1982.
(2) E. Bloch, Das Prinzip Hoffnung, Frankfurt/Main 1959, p. 920; Cfr F. Hartl, Der Begriff des Schopferischen.
Deutungsversuche der Dialektik durch E. Bloch und F. v. Baader, Frankfurt/Main 1979, p. 110.
(3) E. Bloch, Das Prinzip Hoffnung, Frankfurt/Main 1959, p. 920s.; F. Hartl, Der Begriff des Schopferischen. Deutungsversuche der Dialektik durch E. Bloch und F. v. Baader, Frankfurt/Main 1979, p. 111.
(4) P. Feyerabend, Wider den Methodenzwang, FrankfurtM/Main 1976, 1983, p. 206.

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