terça-feira, 8 de março de 2011

Fernando Gabeira entende de aborto. Fez vários. Monstruoso o modo de contar.

"Ulla vivia uma outra época, e resolvi voltar para meu esconderijo. Acontece que ficou grávida e tivemos de nos reencontrar várias vezes para discutir o assunto. Já havia acontecido isto comigo no Brasil mas as circunstâncias eram outras. Na Suécia, a gravidez não é assim um problema muito especial, mas não deixa de ser um problema. Acreditei que Ulla queria voltar para mim através da gravidez e não encontrava o tom exato para ser solidário com ela e, ao mesmo tempo, mostrar que a relação tal como existia não ia prosseguir mais.
      Foi mediante a gravidez de Ulla que compreendi também as limitações suecas no que diz respeito ao aborto. Já havia sentido isto ligeiramente num filme de Bergman, No Limiar da Vida, mas, na época, meu nível de consciência era baixo.
     Ulla, como qualquer sueca em suas condições, teria direito ao aborto gratuito nos hospitais oficiais. Acontece que ela era atendida na mesma clínica em que eram atendidas as gestantes e, muitas vezes, forçada a esperar horas numa ante-sala cheia de mulheres grávidas, imensas fotos de crianças, recém-nascidos que eram mostrados aos pais orgulhosos - enfim, uma atmosfera completamente conflitante com sua opção de aborto.
     É a maneira através da qual a sociedade sabota uma lei considerada muito avançada para seu tempo. Ulla saía cada vez mais deprimida das consultas e sua crise após o aborto levou várias semanas para ser superada. Tudo foi feito com muita habilidade técnica, mas haja força para resistir à sensação de culpa que te transmitem só porque você está abortando.
     É difícil ser pai, de um ponto de vista de divisão das tarefas no parto. Foi muito mais difícil ser o parceiro naquele aborto, dadas as condições delicadas de nossa relação. Ulla sentia-se culpada pelo aborto, eu sentia-me culpado por estar no fundo tão distante daquilo: o feto se gestava na sua barriga e era de lá que seria arrancado, todo o desgaste físico seria dela; a mim caberia apenas expressar minha solidariedade, e com todo cuidado para que não pensasse que era o amor voltando".


(trecho do livro "O crepúsculo do macho" - Editora Codecri/1980)"



Gabeira, nas praias do Rio, de sunga de crochê
(na verdade, o biquini de sua prima Leda Nagle),
na sua volta ao Brasil, em 79.

2 comentários:

  1. Realmente vc tem razão LALI especialmente porque não era ninguém da sua família.
    Gostaria de ouvir a sua opinião se isto tivesse ocorrido com uma filha sua.
    Aliás pelo visto vc tem muita experiência nesta área.
    Sucesso!

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