segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Dugin, não fala abobrinha



     Aleksandr Dugin, o ideólogo russo do eurasianismo considerado por muitos o mentor intelectual de Vladimir Putin, veio ao Brasil em 2012 e, pelo jeito, caiu de amores pelo Brasil Brasileiro. Quem o ouve falar aposta que a MPB e a bossa-nova são melhores do que a obra clássica completa de Prokofiev e Tchaicovsky juntos.

   
 Encantos à parte pelo patropi, Dugin falou, sim, muita abobrinha sobre o processo de integração do negro na sociedade colonial brasileira e a presença de elementos da cultura africana na formação cultural do Brasil.

     Ouvindo
 o galo cantar sem saber onde, Dugin tirou da cartola uma lorota para explicar a 'identidade dos afro-descendentes brasileiros': a de que os negros escravos vinham da África para o Brasil agrupados por tribos; por isto, eles mantiveram sua identidade étnica e influenciaram profundamente a cultura brasileira. Nada mais falso.

    O dublê de cientista e guru apresentou sua tese fantasiosa numa entrevista em que discorre sobre a tal identidade, que o encantou quando ele 
veio ao Brasil, ano passado, depois de debater, pela internet, com o filósofo Olavo de Carvalho sobre "Os Estados Unidos e a Nova Ordem Mundial". Do debate, que virou livro, Dugin falou pouco, limitando-se a classificá-lo como 'duríssimo.
      
  
      Segundo a teoria historico-socio-antropológica de Dugin, os escravos eram desembarcados e vendidos em grupos tribais; podiam, assim, expressar-se na própria língua, manter os costumes, transmitir seus valores, reproduzir as formas de organização social e praticar sua religião, possibilitando a preservação da cultura africana e suas formas de identificação coletivas na nova sociedade para onde foram transplantados.
        
     A unidade linguístico-cultural dos contingentes africanos e a transmissão do seu patrimônio cultural às gerações posteriores  seriam, na opinião do estudioso russo, responsáveis pela forte identidade social do negro brasileiro,
     
     A partir daí, também se compreenderia a influência determinante de elementos da cultura africana na formação do Brasil. Palavras de Dugin: "Os afro-brasileiros preservaram, em alto grau, seus cultos, seu 'eu', sua identidade étnica".

    Isto é bullshit. Quem garante é o antropólogo marxista, Darcy Ribeiro, autor de um dos mais completos e confiáveis estudos sobre a fusão de culturas que formou o Brasil. Está lá, em seu livro "O Povo brasileiro - A formação e o sentido do Brasil"
   
     "Os negros que vieram para o Brasil foram capturados meio ao acaso nas centenas de povos tribais, alguns hostis entre si, que falavam dialetos e línguas não-inteligíveis uns aos outros. A África era, então, como ainda hoje o é, uma imensa Babel de línguas.
     (...) A diversidade lingüística e cultural dos contingentes negros introduzidos no Brasil, somada a essas hostilidades recíprocas que eles traziam da África e à política de evitar concentrações de escravos oriundos de uma mesma etnia, nas mesmas propriedades, e até mesmo nos navios negreiros, impediu a formação de núcleos solidários que retivessem o patrimônio cultural africano. 
     (...)"O papel decisivo do negro na formação da sociedade local foi por excelência o de agente de europeização que difundiria a língua do colonizador e que ensinaria aos escravos recém-chegados as técnicas de trabalho, as normas e valores próprios da subcultura a que se via incorporado."

      Como se vê, o negro foi o elemento unificador e civilizador do Brasil, já que foi obrigado a aprender a língua do colonizador e do senhor da casa grande para poder se comunicar com os capatazes e com os outros escravos da senzala. A unidade linguística brasileira é resultado desta forma de escravização.
   
     Fundamentado em mais de trinta anos de pesquisas, o antropólogo brasileiro não deixa dúvidas de que a contribuição cultural do negro foi pouco relevante na formação da protocélula original da cultura brasileira.  
     "O papel do negro como agente cultural foi mais passivo que ativo, ainda que o negro tenha tido importância crucial como massa trabalhadora que produziu quase tudo que aqui se fez".
   
     Pois é, alguém precisa avisar Dugin que Darcy Ribeiro contraria frontalmente a sua tese. Mas, pelo jeito, o pai do eurasianismo não está nem aí para o que escreveu Darcy Ribeiro. O cientista político russo diz textualmente, sem corar, pérolas como esta
      
     "Na América Latina, os escravos eram tomados dos navios e estabelecidos da mesma forma como foram capturados - por tribos, enquanto na América do Norte eles eram distribuídos para donos diferentes, de modo a evitar a preservação da sua identidade.
     Na prática anglo-saxônica, é o indivíduo sozinho. Você o compra e retira dele todas as formas de identidade coletiva. Ele não sabe a língua, é afastado de seus companheiros de tribo. Por isto, os afro-americanos do norte não tem sua própria cultura. Eles são diferentes dos brancos, mas não possuem sua própria identidade social.
     Quanto aos escravos brasileiros, eles se estabeleceram não isolados, como na América do Norte, mas integrados. Então, eles mantiveram seus cultos (candomblé, macumba), suas próprias tradições religiosas, a cultura e mesmo a língua, pelo menos, em parte.
            
     Esta peculiaridade, 'muito interessante', na opinião de Dugin, provocou um efeito completamente distinto daquele da sociedade norte-americana, fazendo do Brasil "um mundo único", segundo o cientista russo. 

     Cometer um erro deste gravidade, alardeando que a integração do negro brasileiro foi harmoniosa e sem ruptura com a herança cultural africana, ou seja, o contrário do que ocorreu na América do Norte, equivale a dizer que o gênero de colonização no Brasil foi o mesmo dos Estados Unidos. (No caso dos negros escravos, foi semelhante: eles eram de etnias diferentes, às vezes, até inimigos). Quanto ao colonizador europeu, no entanto, o tipo de colonização não tinha nada a ver um com o outro. 

     Lá, na America do Norte, o processo foi de cultura transplantada. "Os ingleses estavam empenhados em transplantar sua paisagem mundo afora, recriando pequenas Inglaterras, dispostos a simplesmente conquistar seu naco do bolo americano"(Darcy Ribeiro), além de também resolver o problema de excedentes de massas famélicas de seus próprios reinos   

     O povoamento de colônias inglesas por famílias e comunidades inteiras implicava transplantar da Inglaterra para a colônia toda a organização social, as técnicas de produção, o ordenamento jurídico e as crenças e práticas religiosas. Os colonos como que recebiam praticamente uma nova pátria por fazer.

      A colonização do Brasil deu-se por processo inteiramente diverso. Uma das peculiaridades foi a vinda tanto de Portugal quanto da África para cá, nos primeiros tempos, de contingentes integrados quase que exclusivamente por homens, sem a companhia de mulheres ou família. Daí, Darcy Ribeiro referir-se sempre ao ventre indígena, a grande matriz tupi, de que todos nós brasileiros somos filhos. 

      Voltando e (contrariando)à tese maluca de Dugin, o tipo de colonização do Brasil fez com que os negros escravos - sem sua identidade tribal e, no início, sem sequer sua família nuclear - ficassem completamente desenraizados culturalmente e impossibilitados de aqui reproduzir a sua cultura original, obrigando-os a se integrar e aderir ao modo de vida indígena para garantir a sobrevivência. 

     Radicalmente deculturados pela erradicação de sua cultura africana, os negros foram simultaneamente se aculturando nos modos brasileiros de ser e de fazer. 

     E já que a sua cultura não podia expressar-se nas formas de adaptação (os modos de prover a subsistência), nem tampouco nos modos de associação (a organização da vida social), restou-lhe o plano ideológico - as crenças religiosas e as práticas mágicas - em que o negro escravo buscava explicar e encontrar consolação para suas próprias experiências. Darcy Ribeiro observa:
      
     "A estas crenças e práticas religiosas, o negro se apegava no esforço ingente por consolar-se do seu destino e para controlar as ameaças do mundo azaroso em que submergira. Junto com estes valores espirituais, os negros retêm, no mais recôndito de si, tanto reminiscências rítmicas e musicais quanto sabores e gostos culinários.

     Esta parca herança africana - meio cultural e meio racial -, associada às crenças indígenas, emprestaria à cultura brasileira, no plano ideológico, uma singular fisionomia cultural. Nesta esfera é que se destaca, por exemplo um catolicismo popular muito mais discrepante que qualquer das heresias cristãs tão perseguidas em Portugal."
     
     Darcy Ribeiro remete sempre ao início da escravização, e à forma como ela se deu, para justificar a presença pouco marcante de elementos africanos na cultura brasileira, (quase) restrita à música e danças, temperos culinários e, mais tardiamente, nas religiões de matrizes africanas, em simbiose com crenças indígenas e o catolicismo. Sobre os primeiros contingentes de escravos, Darcy afirma:

      Embora mais homogêneos no plano da cultura, os africanos variavam também largamente nessa esfera. Tudo isso fazia com que a uniformidade racial não correspondesse a uma unidade lingüístico-cultural, que ensejasse uma unificação, quando os negros se encontraram submetidos à escravidão.

     A própria religião, que hoje, após ser trabalhada por gerações e gerações, constituiu-se uma expressão da consciência negra, em lugar de unificá-los, então, os desunia. Foi até utilizada como fator de discórdia, segundo confessa o conde dos Arcos.


    
Encontrando-se dispersos na terra nova, ao lado de outros escravos, seus iguais na cor e na condição servil, mas diferentes em língua, na identificação tribal e frequentemente hostis pelos referidos conflitos de origem, os negros foram, assim compelidos a incorporar-se passivamente no universo cultural da nova sociedade. 

     Dão, nestas circunstâncias adversas, um passo adiante dos outros povoadores ao aprender o português com que os capatazes lhes gritavam e que, mais tarde, utilizariam para comunicar-se entre si. Acabaram conseguindo aportuguesar o Brasil."


 

     




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