Quando, no final de 2004/início de 2005, a empulhação marxista começou a ficar nítida e a transcendência voltava a fazer sentido, eu fui atrás de qualquer informação que me apontasse para Deus. Eu estava tateando à procura do caminho de volta para a Casa do Pai.
Eu não erraria se dissesse que eu encontrei o caminho, no dia 2 de abril de 2005, ainda que não me desse conta inteiramente do que estava acontecendo comigo. Quando eu ouvi o anúncio da morte do Papa João Paulo II, naquele 2 de abril, eu disse, chorando, ao meu marido:"Este homem está há 25 anos tomando conta de nós".
Dizem que as coisas não acontecem assim (acontecem assim, sim) mas naquele dia algo profundo aconteceu. Foi, ali, o "instante" da conversão. Hoje, eu costumo dizer que eu sou o último milagre de João Paulo II, eu tenho certeza de que ele rezou por mim.
Um mês depois da morte do papa, em maio, numa destas buscas pela internet, acabei caindo no site da Montfort, do professor Orlando Fedeli. Gostei. Era uma coisa totalmente oposta à igreja modernosa e horrorosa dos padres-vedetes e das missas cheias de graça. Entrei e fui devorando o que encontrava. Li tudo.
Em outubro de 2005, já radicalmente de volta à fé da Igreja, reconciliada com Deus e santificada pelos sacramentos da confissão e Eucaristia, eu resolvi escrever um relato da minha conversão, a que dei o título "A Volta para Casa" * e, como não tinha nem blog para publicar, resolvi mandar para o site da Montfort. Não cogitei que fosse ser publicado.
Para minha surpresa, o próprio professor Orlando ligou para a minha casa, chorando, comovido com o meu relato, querendo minha permissão para publicar a carta. Eu mal acreditei. Fiquei lisonjeada.
Começamos a trocar emails e, em fevereiro de 2006, ele veio até a minha casa com a sua esposa, Ivone, para que nos conhecéssemos. Ivone é uma mulher admirável, estudiosa, muito culta, preparada, e que tratava o professor com doçura, respeito e firmeza. Nos tornamos grandes amigos.
Como meus filhos não eram batizados, ele se ofereceu para ensinar-lhes o catecismo e, durante seis meses, ele veio toda quarta-feira à tarde para as aulas de religião. E conversávamos muito, eu o ouvia falar com prazer. Aprendi muito com o professor.
O professor sabia tudo da história da Igreja e da doutrina católica. Ele tinha um memória prodigiosa e era uma das pessoas mais divertidas com quem se podia conviver. E se doava com uma generosidade rara.
Em maio daquele ano, eu completaria 25 anos de casamento e decidi me casar no religioso, eu era casada apenas no civil. Foi uma cerimônia singela, mas comovente. Convidei o professor Fedeli e Ivone para serem meus padrinhos. O coral de música sacra da Associação Montfort cantou na cerimônia, foi muito bonito. Entrei na igreja com meu filho, ao som de "Jesus, alegria dos homens".
A minha convivência com os Fedeli e o pessoal da Montfort era cordial e prazeirosa, eu ia aos domingos assistir à missa em latim, na paróquia São Carlos Borromeu, na Moóca (onde o professor morava) e participava dos excelentes cursos e palestras promovidos pela Montfort, sempre ligados ao cristianismo, Igreja, cultura do período conhecido como 'cristandade, arte sacra, Idade Média, doutrina católica.
Depois dos cursos, os alunos e participantes costumavam se reunir em animados e divertidos almoços em trattorias paulistanas. Era um ambiente e clima muito acolhedores, de conversa elevada, pessoas educadas e elegantes. Eu adorava.
Eu era tratada com muita deferência, tanto pelo próprio Orlando Fedeli quanto pelo pessoal que fazia parte, vamos dizer assim, de seu apostolado, o pessoal da Associação Montfort. Todos demonstravam sinceramente admiração pela forma honesta com que eu relatei a minha conversão, pela minha adesão ao grupo, sem arrogância elitista ou pedantismo intelectual e, não raro, ouvi confissões, verdadeiras, de pessoas que disseram-me ter se convertido depois de ler meu testemunho no site da Montfort. Todo mundo conhecia e se referia à "jornalista que escreveu A Volta para Casa"
Mas, a certa altura, sem que eu pudesse imaginar, as coisas sairam do eixo e o rompimento - inevitável - aconteceu. É que, apesar de tratar o professor Fedeli com absoluta reverência e respeito, eu comecei a fazer questionamentos sobre certos 'dogmas' fedelianos. A sua obsessão pela gnose o fazia ver heresias gnósticas em toda a parte, em qualquer coisa. Eu não sabia quase nada, mas sempre queria saber 'por que', 'como', o quê...
Nunca houve, contudo, qualquer desentendimento sério ou conversa ríspida entre nós. Até que, certo dia, ele me telefonou, dizendo que nós precisávamos conversar sobre um email que eu lhe enviara. Nele, eu me referia a um texto do então cardeal Joseph Ratzinger sobre protestantismo, que a mim parecia uma análise mais correta do que a de um aluno seu, que escrevera um artigo sobre Lutero no site da Montfort. No email, eu dizia:
"Professor Orlando, lendo a análise de Marcos Libório sobre "Os três princípios protestantes", lembrei-me de um texto escrito pelo cardeal Ratzinger, em 1986 - http://www.ratzinger.it/modules.php?name=News&file=article&sid=216 - em que ele fala do protestantismo numa perspectiva diametralmente oposta à do texto publicado no site da Montfort.
"Para Ratzinger, o protestantismo é cristianismo e é a partir do que ele tem em comum com o catolicismo - e tem muito - que deve se dar o diálogo com vista à unidade dos cristãos. Quando li este texto, achei-o muito rico e pensei mostrá-lo e discutí-lo com o senhor. Por qualquer motivo, acabei esquecendo."
"Este tipo de análise feita por Marcos Libório não faz muito sentido para mim. Dizer que todos os protestantes do mundo são, velada ou abertamente, adoradores do demônio e que servem à Satanás é evidentemente um absurdo. É uma idéia que, na minha opinião, não se sustenta nem teológica nem doutrinariamente."
"Pode existir - e existem - adoradores do diabo em todo lugar; agora, dizer que a doutrina protestante é pura gnose - aquela mesma, explicada em termos bem simples - é uma simplificação. Com o tipo de argumentação e raciocínio utilizados, Libório prova que até rótulo de xampu é gnóstico."
"Non sono intenditore, o que li sobre doutrina católica e o protestantismo não me habilita a desafios intelectuais maiores. Mas, pelo pouco que compreendi, fico com a análise apresentada pelo cardeal Ratzinger. O que o senhor acha?"
Na verdade, o professor Orlando Fedeli não queria conversar, ele queria que eu aceitasse, sem discutir, o seu ponto de vista, o mesmo defendido por Marcos Libório no artigo: os protestantes são todos hereges satânicos a caminho do inferno.
Quanto à posição de Raztinger centrada na crença em Cristo como plataforma comum inicial para o diálogo com os protestantes, o professor Fedeli insistiu que Joseph Ratzinger tinha mudado de opinião e não pensava mais como no artigo por mim citado (I progressi dell'ecumenismo/86).
O professor Orlando sabia que isto não era verdade. Eu lhe recordei que o Papa Ratzinger tinha reafirmado, palavra por palavra, o artigo de 86, num encontro com protestantes na Alemanha, durante a XX Jornada Mundial da Juventude, em 2005. Nem assim, ele admitiu seu equívoco.
Quanto aos comentários à enciclica Gaudium et Spes, que Ratzinger qualificou como 'uma espécie de Antisyllabus', observei que eles eram de 85, portanto, anteriores ao artigo citado. (Fedeli tinha feito referência a isto na conversa)
Como o professor Fedeli tinha uma memória prodigiosa para fatos e datas, cometer aqueles 'erros' eram, na verdade, um 'excesso de zelo' pelo que o professor Orlando considerava a verdadeira ortodoxia católica. Ele como que ficou cego de amor a Deus.
A conversa desandou quando eu lhe perguntei: "Onde é que o senhor acha que Buda está?" Ele disse " Isto eu não vou lhe responder". E encerrou a conversa dizendo que, se eu não aceitava o que ele tinha me ensinado, deveríamos parar por ali. Respondi: "Reze por mim". Foi a última vez que conversamos.
A conversa desandou quando eu lhe perguntei: "Onde é que o senhor acha que Buda está?" Ele disse " Isto eu não vou lhe responder". E encerrou a conversa dizendo que, se eu não aceitava o que ele tinha me ensinado, deveríamos parar por ali. Respondi: "Reze por mim". Foi a última vez que conversamos.
Eu fiquei muito triste com o afastamento, foi abrupto, rápido, sem motivo. Hoje, eu vejo que eu não cabia no seu grupo, eu não poderia fazer parte de seu apostolado. As pessoas à sua volta não ousavam fazer qualquer questionamento, objeção ou pergunta incômoda. Era uma reverência submissa.
Não que ele estivesse cercado de gente ignorante, seus alunos eram gente simpática, educada, afetuosos. Todos estudavam muito, liam, eram cultos. Mas, em alguns meses de convivência com o pessoal da Montfort, não vi ninguém questionar ou debater criticamente as idéias do professor. Melhor: ninguém questionava a Idéia, a sua teoria sobre a gnose, assunto de sua polêmica-batalha com Olavo de Carvalho.
Eu sempre tive uma atitude de absoluto respeito pelo professor Orlando Fedeli. Sempre deixei clara minha gratidão pela paciência e generosidade com que me ensinava e respondia às minhas perguntas e questionamentos. E eram tantos, porque eu era uma analfabeta de Deus. Completamente.
Além de seu invejável saber, impressionavam também a sua fidelidade à Igreja, a devoção à Virgem Maria e a dedicação ao ensinamento da doutrina católica . Ele era uma pessoa boa, amava a Deus e reconhecia, sem falsificações, que era pecador e precisava da misericórdia divina.
Mas, Orlando Fedeli, no fundo, talvez fosse vaidoso. Não é à toa que dizem ser a vaidade o pecado humano preferido do diabo. Com todo o respeito, afeto e gratidão que tenho pelo professor, acho que ele não vivia sem aquele apostolado submisso e reverente à sua volta.
Eu penso que, assim como o meu brilho intelectual o atraiu e o lisonjeou, por reconhecê-lo como um homem culto, crítico e erudito, foi também isto que o fez sentir-se de alguma forma desconfortável com a minha presença. Afinal, ele tinha em mim alguém que perguntava demais.
Ironia: de certa forma, o professor Fedeli contribuiu enormemente para a minha descoberta de Olavo de Carvalho. Na época em que eu achei o site da Montfort e conheci Orlando Fedeli, eu já lia Olavo e me maravilhava. Quando o professor Fedeli me apresentou à sua teoria da gnose, ele também me contou que aquele homem a quem eu atribuía idéias sofisticadas, brilhantes, originais, surpreendentes, chamado Olavo de Carvalho, de quem eu não parava de falar, era gnóstico!
Interessante é que eu falava com ele sobre coisas de Olavo de Carvalho, que eu tinha lido e gostado, e ele concordava comigo! Mas - o alerta - Olavo de Carvalho é gnóstico, Olavo de Carvalho é maçom! Era sempre o mesmo bordão.
Ora, se gnose é coisa do diabo, do diabo é preciso distância. Só que eu lia, lia, lia e não descobria onde diabos estava a gnose de Olavo de Carvalho! O que devia ser isto exatamente? eu me perguntava.
Então, resolvi fazer a lição de casa: li inteira a polêmica Orlando Fedeli X Olavo de Carvalho. Para ser sincera, na época fiquei (quase) na mesma, eu estava muito aquém daquela discussão. Eu estava engatinhando no catecismo, não ia arbitrar teologia ou filosofia!
Só tempos depois, quando acumulei mais leituras sobre o assunto, eu pude situar definitivamente a aplicação do conceito de gnose pelo professor Fedeli. E entender que ele queria dar uma seqüencia histórica às idéias gnósticas, que Olavo de Carvalho afirmava não existir. Eu acho que o enfoque de Orlando Fedeli faz sentido apenas quando se toma a gnose como a 'heresia eterna', termo que li num texto do próprio Cardeal Ratzinger.
(Ironia: quando eu estava no 'apostolado' de Orlando Fedeli, mesmo sem saber quase nada, eu inclinava-me à idéia de que ele vencera o debate; quando passei para as hostes olavianas, convenci-me de que, ao contrário, Olavo de Carvalho é que saiu-se vencedor. Só agora, ao me afastar do círculo de alunos de Olavo e em face do volume de informações sobre seu passado de tariqueiro, estou me dando conta de que, pelo menos, parte da verdade pode ter voltado a estar com Orlando Fedeli)
(Ironia: quando eu estava no 'apostolado' de Orlando Fedeli, mesmo sem saber quase nada, eu inclinava-me à idéia de que ele vencera o debate; quando passei para as hostes olavianas, convenci-me de que, ao contrário, Olavo de Carvalho é que saiu-se vencedor. Só agora, ao me afastar do círculo de alunos de Olavo e em face do volume de informações sobre seu passado de tariqueiro, estou me dando conta de que, pelo menos, parte da verdade pode ter voltado a estar com Orlando Fedeli)
Eu nunca tive qualquer intenção de desafiar, constranger ou fazer-me de sabichona perante Orlando Fedeli. Eu o respeitava muito e sei que ele gostava sinceramente de mim. Tinha admiração por mim, valorizava o meu interesse genuíno em aprender.
Mas eu perguntava demais. Vício de ofício: jornalista não sabe as respostas, sabe as perguntas. Até hoje, penso nele, lembro dele e rezo por ele. Quando o professor Orlando Fedeli morreu em 9 de junho de 2010, eu liguei para Ivone, deixei um recado com a empregada de que eu tinha ligado. Quando retornei a ligação (muitas), ela não estava, não podia atender, etc. Desisti de ligar.
Escrevi uma comovida carta de pesar pela morte dele e enviei ao site Montfort. Nunca foi publicada. Eu sei que Orlando Fedeli está no céu, esperando para darmos boas risadas. E ainda vou aprender muito com ele. Será sempre meu professor.
Que Deus o recompense pelo bem que fez a mim e a tantas almas.
http://blogdemirianmacedo.blogspot.com.br/2011/12/volta-para-casa_8006.html