domingo, 18 de março de 2018

A coisa (não) está preta



A estudiosa Alba Zaluar expõe magistralmente a questão racial no Brasil, no artigo abaixo. Convém ler:
"DEDICO ESTE POST AOS MILITANTES DOS MOVIMENTOS NEGROS:
             Em um campo mais próximo das realidades políticas, um debate como o da “raça” e da identidade dá lugar a semelhantes intrusões etnocêntricas. Uma representação histórica, surgida do fato de que a tradição americana calca, de maneira arbitrária, a dicotomia entre brancos e negros em uma realidade infinitamente mais complexa, pode até mesmo se impor em países em que os princípios de visão e divisão, codificados ou práticos, das diferenças étnicas são completamente diferentes e em que, como o Brasil, ainda eram considerados, recentemente, como contraexemplos do “modelo americano”. 

           A maior parte das pesquisas recentes sobre a desigualdade etno-racial no Brasil, empreendidas por americanos e latino-americanos formados nos Estados Unidos, esforçam-se em provar que, contrariamente à imagem que os brasileiros têm de sua nação, o país das “três tristes raças” (indígenas, negros descendentes dos escravos, brancos oriundos da colonização e das vagas de imigração européias) não é menos “racista” do que os outros; além disso, sobre esse capítulo, os brasileiros “brancos” nada têm a invejar em relação aos primos norte-americanos. 

           Ainda pior, o racismo mascarado à brasileira seria, por definição, mais perverso, já que dissimulado e negado. É o que pretende, em Orpheus and Power (1994), o cientista político afro-americano Michael Hanchard: ao aplicar as categorias raciais norte-americanas à situação brasileira, o autor erige a história particular do Movimento em favor dos Direitos Civis como padrão universal da luta dos grupos de cor oprimidos. 

          Em vez de considerar a constituição da ordem etno-racial brasileira em sua lógica própria, essas pesquisas contentam-se, na maioria das vezes, em substituir, na sua totalidade, o mito nacional da “democracia racial” (tal como é mencionada, por exemplo, na obra de Gilberto Freyre, 1978), pelo mito segundo o qual todas as sociedades são “racistas”, inclusive aquelas no seio das quais parece que, à primeira vista, as relações “sociais” são menos distantes e hostis. De utensílio analítico, o conceito de racismo torna-se um simples instrumento de acusação; sob pretexto de ciência, acaba por se consolidar a lógica do processo (garantindo o sucesso de livraria, na falta de um sucesso de estima). 
         Em um artigo clássico, publicado há trinta anos, o antropólogo Charles Wagley mostrava que a concepção da “raça” nas Amé- ricas admite várias definições, segundo o peso atribuído à ascendência, à aparência física (que não se limita à cor da pele) e ao status sociocultural (profissão, montante da renda, diplomas, região de origem, etc.), em função da história das relações e dos conflitos entre grupos nas diversas zonas (Wagley, 1965). 

             Os norte-americanos são os únicos a definir “raça” a partir somente da ascendência e, exclusivamente, em relação aos afro-americanos: em Chicago, Los Angeles ou Atlanta a pessoa é “negra” não pela cor da pele, mas pelo fato de ter um ou vários parentes identificados como negros, isto é, no termo da regressão, como escravos. Os Estados Unidos constituem a única sociedade moderna a aplicar a one-drop rule e o princípio de “hipodescendência”, segundo o qual os filhos de uma união mista são, automaticamente, situados no grupo in- ferior (aqui, os negros). 

          No Brasil, a identidade racial define-se pela referência a um continuum de “cor”, isto é, pela aplicação de um princípio flexível ou impreciso que, levando em consideração traços físicos como a textura dos cabelos, a forma dos lábios e do nariz e a posição de classe (principalmente, a renda e a educação), engendram um grande número de categorias intermediárias (mais de uma centena foram repertoriadas no censo de 1980) e não implicam ostracização radical nem estigmatização sem remédio. 

         Dão testemunho dessa situação, por exemplo, os índices de segregação exibidos pelas cidades brasileiras, nitidamente inferiores aos das metrópoles norte-americanas, bem como a ausência virtual dessas duas formas tipicamente norte-americanas de violência racial como são o linchamento e a motim urbano (Telles, 1995; Reid, 1992). Pelo contrário, nos Estados Unidos não existe categoria que, social e legalmente, seja reconhecida como “mestiço” (Davis, 1991; Williamson, 1980). 

         Aí, temos a ver com uma divisão que se assemelha mais à das castas definitivamente definidas e delimitadas (como prova, a taxa excepcionalmente baixa de intercasamentos: menos de 2% das afro-americanas contraem uniões “mistas”, em contraposição à metade, aproximadamente, das mulheres de origem hispanizante e asiática que o fazem) que se tenta dissimular, submergindo-a pela “globalização” no universo das visões diferenciantes. 

             Mas todos esses mecanismos que têm como efeito favorecer uma verdadeira “globalização” das problemáticas americanas, dando, assim, razão, em um aspecto, à crença americanocêntrica na “globalização” entendida, simplesmente, como americanização do mundo ocidental e, aos poucos, de todo o universo, não são suficientes para explicar a tendência do ponto de vista americano, erudito ou semi-erudito, sobre o mundo, para se impor como ponto de vista universal, sobretudo quando se trata de questões tais como a da “raça” em que a particularidade da situação americana é particularmente flagrante e está particularmente longe de ser exemplar. 

         Poder-se-ia ainda invocar, evidentemente, o papel motor que desempenham as grandes fundações americanas de filantropia e pesquisa na difusão da doxa racial norte-americana no seio do campo universitário brasileiro, tanto no plano das representações, quanto das práticas. Assim, a Fundação Rockefeller financia um programa sobre “Raça e Etnicidade” na Universidade Federal do Rio de Janeiro, bem como o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (e sua revista Estudos Afro-Asiáticos) da Universidade Candido Mendes, de maneira a favorecer o intercâmbio de pesquisadores e estudantes. 

        Para a obtenção de seu patrocínio, a Fundação impõe como condição que as equipes de pesquisa obedeçam aos critérios de affirmative action à maneira americana, o que levanta problemas espinhosos já que, como se viu, a dicotomia branco/negro é de aplicação, no mínimo, arriscada na sociedade brasileira."

        Dedico este post aos militantes dos movimentos negros.
Eu não esperava apoio para o que venho dizendo há pelo menos 30 anos, assim como os colegas Peter Fry e Yvonne Maggie entre vários outros, de Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, dois intelectuais reconhecidamente de esquerda. Eles dois não citam nossos trabalhos, mas estão de pleno acordo com eles. O texto completo está em Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, no 1, 2002, pp. 15-33.

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