sexta-feira, 6 de março de 2015

Califado: o terror que veio para durar

              Ler um livro de Domenico Quirico é como procurar funghi porcini em uma floresta exuberante do Piemonte ou Trentino. O ambiente em volta é esplêndido, pinheiros e madeiras brincam com os raios do sol que atravessam a vegetação rasteira, brotos de plantas e troncos caídos se entrelaçam nas dobras do terreno irregular. Até que, sob o tapete de folhas mortas, desponta  o rei dos cogumelos, firme e vistoso, com seu caule e chapéu branco-marrom ou castanho.

             Nos livros do correspondente de La Stampa  'i porcini' são julgamentos, definições, conceitos que aparecem de surpresa, ao mesmo tempo em que nas páginas se desenvolve a história dos lugares, dos encontros e dos fatos.


             'O  Grande Califado' é um percurso através da geografia "sfuggente" dos lugares onde o ressurgimento do Califado foi pré-anunciado, anunciado e, finalmente, realizado nos últimos anos, começando naquele dia, quando, como prisioneiro na Síria do grupo al Qusayr, pela primeira vez o Quirico refém dos  jihadistas foi colocado a par do "segredo".

             Depois daquele dia, passaram a fazer sentido pessoas e palavras ouvidas na Nigéria, Mali, Argélia, Tunísia, Iraque, Líbia, Somália. Que integram "o coração de trevas de uma nova etapa histórica, um novo emaranhado envenenado do homem e do século que nasce: o totalitarismo islâmico global" («il cuore di tenebra di una nuova fase storica, di un nuovo groviglio avvelenato dell’uomo e del secolo che nasce: il totalitarismo islamico globale», como escreve Domenico Quirico.

             Antes que o califado fosse proclamado por Al Baghdadi, várias pessoas, que não estão ligadas umas às outras, nos tinham anunciado que a instituição histórica seria ressuscitada. O que isto significa?


              Significa que era um objetivo projetado há muito tempo.  A criação do Califado é a razão pela qual tantos estrangeiros passaram a lutar na Síria. Antes do Isis, a Frente Jabhat al Nusra, que é afiliada a Al Qaeda, já declarava que este era seu objetivo; e também aqueles das brigadas Faruk, que são considerados os islamistas moderados, falavam a mesma coisa.

              O senhor escreve que os militantes do Califado "são muitas vezes ignorantes e de de visão restrita, homens simples, posteriormente tornados ainda mais primitivos, com instintos aguçados pela força dos acontecimentos." Então, por que estamos com tanto medo?


              Porque entre eles há muitos que não são nem primitivos nem tolos. Há jovens licenciados na área da ciência, há um teólogo bem formado, como Baghdadi. O que nos assusta são suas biografias ocas, vazias: a vida começa quando eles vão para a batalha. Seja por lavagem cerebral ou por própria escolha. Eles começam a viver quando se tornam revolucionários profissionais.

             O senhor escreve também que "o massacre de pessoas pressupõe, de parte de quem o realiza, um esforço físico e, sobretudo, psicológico, muito forte." Mas nos vídeos eles parecem matar com entusiasmo e sem qualquer tipo de restrição moral.

             Porque nós os vemos quando eles já fizeram esse esforço, isto já foi deixado para trás. Chegar a matar é complicado para qualquer um. Há muito trabalho a fazer em si mesmo para ser convencido de que é necessário, que é certo, de que não há alternativas. Você pode matar num ato impulsivo, mas tornar-se assassino consciente é um processo complicado e longo. Ao fim de que matar torna-se fácil e automático.

            O que podemos esperar dos muçulmanos 'do bem' nesta guerra contra os muçulmanos fanáticos?

            Na minha opinião, muito pouco. Não porque eu não aprecie a sua inclinação para a prática de uma religião não-violenta. Mas simplesmente porque constantemente, na história,  maiorias mornas e normais acabam por se deixar arrastar pelas minorias despóticas e ferozes. Por várias razões: medo, interesse  ou por comodismo. Os muçulmanos não se opõem, realmente, mas não podemos crucificá-los: fazer uma manifestação contra o Isis é perigosíssimo, não só em Mosul, mas em Tunis. Existem bairros de Tunis onde isto é muito perigoso!

           O senhor diz que há um sentido muçulmano de tempo que é diferente do nosso e que isto explica muitas das coisas que estão acontecendo. Qual é este sentido?

           É a explicação principal do que está acontecendo. Nós, ocidentais, vivemos no presente e no futuro, e nós temos uma relação do tipo arquivístico com o passado. Em vez disso, para os árabes, o passado é presente, é uma crônica de hoje. Dá-lhes a sensação de um fato contemporâneo. A humilhação pelo colonialismo e pela derrota dos impérios muçulmanos é vivida com a raiva de uma humilhação infligida hoje. É daí que nasce a admiração por aqueles que agora procuram inverter as relações de força,   que mostram que o Ocidente não é necessariamente o vencedor.

             Al Baghdadi é um produto genuíno ou é um fantoche nas mão dos norte-americanos, como escrevem alguns?

            Não é importante. A biografia de Baghdadi pode ser falha, mas ele é apenas um nome emprestado a uma instituição. Os obcecados pelas  teorias da conspiração são ridículos: se os americanos fossem tão diabólicos e previssem o futuro, como alguns imaginam,  como entender que eles acumulem tantos fracassos e enganos como nos últimos 50 anos, do Vietnã ao Irã, do Afeganistão ao Iraque? Certamente, o Califado não é um projeto americano. Al Qaeda eles pulverizaram  eliminando Osama Bin Laden, mas com Baghdadi não funciona assim: podem matá-lo, outra califa irá sucedê-lo. 

            Na verdade, há um fato que surpreende: o Califado produz vídeos em abundância, propaganda de horror e propaganda de vida idílica sob a sharia integral. Mas de al Baghdadi divulgou-se um vídeo só, e há aqueles que duvidam de que era realmente ele.


            Pela razão do que eu disse, é a instituição que atrai e seduz, não o seu representante. O culto à personalidade de al Baghdadi é irrelevante para a promoção do Califado.


            O senhor conhece bem a Líbia. Por que também lá o Isis e outros jihadistas têm crescido tão assustadoramente?


             Pelo grande achado de  reunir em torno de uma idéia central revoltas locais que têm razões locais, mas  que se conectam espontaneamente  com a sigla central porque  dela recebem força nova. É o princípio do Comintern, da revolução mundial que tinha Moscou como centro e se nutria da insurgências locais, manobradas por agentes do Comintern para fazê-las convergir com a estratégia de Moscou. O teórico do Comintern "verde"é Abdullah Azzam, o homem que está na origem da Al Qaeda, e que foi assassinado de repente em 1989. Mas a sua visão foi cumprida.


            Sobre os muçulmanos de países europeus que partem para combater pelo Isis, o senhor escreve: "Nós nos iludíamos de que os seduzíamos e, em vez disso, é como se numa manhã eles acordassem e, 
de repente, de dois mundos possíveis restasse apenas um: o retorno à terra amada ou  amaldiçoada". Por que a sedução falhou? 

             Sim, os dois modelos de integração - o francês e o britânico - estão falidos, mas dizer isso não é suficiente: a falência poderia empurrar os imigrantes muçulmanos para os braços do submundo ou das drogas. Em vez disto, eles partem como voluntários para a jihad. É um facto que tem relação com a opacidade da nossa civilização, com a mudança de todos os valores. De nossa parte, a cada dia, o homem se encontra diante da tarefa cansativa de escolher entre valores que estão todos no mesmo plano. O Islam, na versão sem floreios do salafismo, oferece à geração que cresceu no mundo dos valores intercambiáveis ​​a possibilidade de adentrar pelo caminho de algo simples e preciso: o caminho do bem contra o mal. Simplificação que enaltece e que funciona.


             O senhor escreveu também que eles vão usar contra nós os aspirantes a imigrantes, aqueles que agora sobem nos barcos para vir até nós. O Governo italiano nega que os terroristas estejam chegando.


             Eu não disse isso. O que eu percebi é que, pela primeira vez, o Islã radical tem em mãos uma massa de centenas de milhares de pessoas cuja condição humana é reduzida ao instinto de sobrevivência, esvaziados de sua identidade. É uma gigantesca massa de potenciais recrutados. E como eu tinha me referido à velocidade com que os jihadistas transformam seres humanos, eu me pergunto se esses milhares de homens esvaziados de seu passado não vão se tornar um perigo.


            No final, o Califado conquistará a hegemonia política e cultural sobre as massas muçulmanas ou não?


            Talvez lá onde ele está instalado, não; a Mesopotâmia é difícil de dominar militarmente. Mas a realidade do Califado, não naquele lugar, mas em muitos outros lugares do mundo, é um problema que nós teremos de enfrentar por várias décadas. Vamos viver uma era de guerras permanentes relacionadas entre si, onde o tema subjacente será o confronto entre o Islã radical e o Ocidente com seus aliados muçulmanos. Esgotar-se-á a fase sírio-iraquiana e emergirá a fase saheliano-africana, magrebina, líbica, egípcia, e assim por diante. Mas dentro de uma continuidade, porque o projeto totalitário do Califado é um projeto que se move no tempo. É uma tentativa de criar uma administração islâmica, que já existe atualmente: a cada dia que passa é um sucesso para o Califado, porque ele entra na cabeça dos muçulmanos que vivem lá e daqueles que observam de fora.


          Em certos momentos, o senhor investe contra islamólogos ao estilo de Gilles Kepel, que anunciavam a secularização iminente do Islã: "Estes "otimistas" (candide)  apegados a suas cátedras universitárias, seus simpósios em hotéis cinco estrelas, aos cheques de seus editores: acrobatas do otimismo politicamente correto, que nós pagamos para que eles nos digam o que queremos ouvir."


          O seu crime foi que eles inventaram um Islã que não existia, ou que existia muito parcialmente. Queríamos ouvir que no mundo islâmico havia uma grande disposição de dialogar conosco, e estes islamólogos deram um status acadêmico a este nosso desejo. Escolhas políticas erradas foram inspirados por essas leituras acadêmicas.


           Em tudo isto, onde está Deus? Um Deus que não peça sacrifício humano como o dos jihadistas? O senhor diz que O tem visto nas ruínas da catedral católica de Mogadíscio.


           E em muitos outros lugares onde achamos que não deveria estar. Hoje, não há lugar no mundo onde Deus é tão constantemente invocado por palavras e negado por ações como nos lugares onde se desenrola o drama do Califado. A obsessão por Deus e sua negação. Os jihadistas realmente se sentem santos, quando eles não passam de assassinos. Mas Deus está presente na única coisa que conta para mim: no sofrimento, na dor das vítimas. A presença real de Deus está naquele sofrimento. Deus está presente em toda a superfície da enorme dor que há nesses locais. Lá onde Ele é invocado não existe Deus; mas onde aparentemente está ausente, é onde Deus está. Na vítimas.

http://www.tempi.it/il-califfato-e-un-progetto-totalitario-dove-dio-e-invocato-costantemente-a-parole-e-negato-nelle-azioni#.VPe3q_nF_74


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